Prichard Colón: como a falta de regulamentação do boxe nos EUA destrói vidas

08/04/2024 às 20:006 min de leituraAtualizado em 10/04/2024 às 16:38

A prática do boxe remonta aos tempos antigos, quando os lutadores se enfrentavam em competições de combate corpo a corpo para entretenimento dos outros, como na Roma do ano 400. No entanto, a forma moderna da modalidade começou em meados do século XVIII, na Inglaterra, transformada pelas "Regras do Marquês de Queensberry", que deram início à base atual do boxe.

De acordo com Manuel Velázquez, um ativista antiboxe famoso por manter arquivos meticulosos sobre o esporte, desde 1884 cerca de 2 mil boxeadores teriam morrido como resultado direto das lutas. O estudo de Velázquez teve início em 1940 e foi continuado por Joseph R. Svinth a partir de 1990 em um projeto em andamento chamado Death Under the Spotlight: The Manuel Velazquez Boxing Fatality Collection. De 1720 a 2011, Svinth relata 1.863 mortes no esporte.

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O boxe moderno começou com as Regras do Marquês de Queensbery. (Fonte: GettyImages/Reprodução)

O relatório acaba por ressaltar como o boxe foi se aprimorando e se tornando mais seguro do que era há um século. Na década de 1920, por exemplo, foram 233 mortes no boxe, contra 103 nos anos 2000. Desde então, houve 33 mortes, das quais 6 aconteceram nos Estados Unidos. A mais recente foi em setembro de 2021, quando a jovem pugilista de 18 anos, Jeanette Zacarías Zapata foi nocauteada pela canadense Marie Pier Houle após uma série de uppercuts. Zapata sofreu uma convulsão depois que a briga foi interrompida. Ela foi encaminhada ao hospital e faleceu em seguida.

Um estudo realizado pela Compare the Market apontou que a expectativa de vida de um boxeador é 5 anos menor do que a média dos atletas esportivos. O boxe foi o único esporte entre os atletas profissionais que reduziu a expectativa de vida. O estudo afirmou que sofrer traumatismo craniano em lutas e treinamentos é a razão por trás dos números mais baixos do esporte.

Esse foi o caso de Prichard Colón e como um golpe ilegal e a falta de regulamentação do boxe nos EUA destruiu sua vida e carreira.

O começo do fim

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Prichard Colón enfrentou Terrel Williams em 2015. (Fonte: GettyImages/Reprodução)

Em 17 de outubro de 2015, o boxeador profissional Prichard Colón já havia lutado 7 vezes em um ano, quando subiu ao ringue, naquela tarde de sábado, para enfrentar o invicto Terrel Williams, no EagleBank Arean, em Fairfax (Virgínia, EUA).

Em entrevista à ESPN, André Diaz, melhor amigo do boxeador, disse que quando Colón estava no vestiário se preparando para a luta que seria televisionada nacionalmente, ele conseguia sentir sua energia e a emoção do quanto estava pronto para aquele duelo – do qual era o favorito e o mais certo para vencer.

Nos primeiros cinco rounds, Colon assumiu a liderança, mas reclamando ao árbitro Joe Cooper que Williams não parava de acertá-lo com os denominados rabbit punches, ou "socos de coelho", um golpe desferido na parte de trás da cabeça ou na base do crânio. Esse tipo de movimento é considerado ilegal devido seu potencial em causar lesões graves ou irreversíveis. Inclusive, em alguns casos, o soco pode causar lesões na medula espinhal e até morte instantânea.

A reclamação foi ignorada por Cooper, e Williams continuou desferindo os golpes ao longo dos 9 rounds. Durante as pausas, Colón conversou com o médico do ringue, Richard Ashby, e afirmou que estava sentindo tonturas, mas o médico insistiu que ele poderia continuar.

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Prichard Colón foi golpeado por uma série de 'rabbit punches'. (Fonte: GettyImages/Reprodução)

Colón chegou a acertar Williams com um golpe baixo, pelo qual foi penalizado em 2 pontos, muito diferente do que aconteceu com seu adversário, que em momento nenhum foi penalizado pelos seus rabbit punches. Para Richard Colón, o pai do boxeador, o filho fez isso porque estava frustrado por ser atingido tantas vezes atrás da cabeça sem que o árbitro fizesse nada.

Cooper só ameaçou a dupla com a desqualificação quando Colón desferiu outro golpe baixo e Wlliams revidou com um rabbit punch logo em seguida. No nono round, após receber vários golpes ilegais, Colón foi nocauteado pela primeira vez em sua carreira profissional. Ele conseguiu se levantar, mas caiu mais uma vez.

No final da rodada que Colón lutou para passar, seus corners desfizeram os nós de suas luvas, acreditando que a luta havia sido encerrada. Com isso, Colón foi desclassificado e a vitória foi concedida a Terrel Williams.

Fim da linha

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Prichard Colón foi nocauteado no nono round. (Fonte: GettyImages/Reprodução)

Assim que saiu do ringue, Colón disse aos seus pais que estava tonto e não conseguia enxergar nada. À medida que ele se aproximava do vestiário, suas pernas começaram a ficar cada vez mais cambaleantes e o seu corpo, fraco. Ao se sentar, o pugilista vomitou tanto que desmaiou sobre a poça de vômito. Ele nunca mais voltou à consciência.

Colón foi encaminhado às pressas para o Hospital Inova Fairfax, onde uma tomografia mostrou um hematoma subdural do lado esquerdo medindo 1,5 cm de diâmetro e um desvio de 1,2 cm da linha média (um deslocamento do cérebro para além da linha central). Uma hemicraniectomia de emergência foi realizada para tentar reduzir o inchaço cerebral e aliviar a pressão sobre o crânio, mas era tarde demais para Prichard Colón, que entrou em coma por 221 dias. Atualmente, ele encontra-se em estado vegetativo persistente.

Em 2016, um relatório investigativo divulgado pelo estado da Virgínia descobriu que, embora a condição médica de Colón seja trágica, não há uma ação aparente e/ou flagrante que justifique culpar qualquer pessoa. O relatório também não esclareceu as questões sobre a gestão da luta pelo árbitro, tampouco a conduta do médico do ringue, apesar das queixas de Colón durante os rounds. O inquérito conduzido pela família do pugilista e o pedido de indenização não chegaram a lugar algum, e o caso do boxeador continua impune.

O problema

O Departamento de Regulamentação Profissional e Ocupacional da Virgínia (DPOR) investigou o incidente e alegou que não encontrou nenhuma irregularidade na partida entre os dois pugilistas, mostrando como existe um verdadeiro lobby de profissionais que relutam a apontar ou criticar algumas práticas no esporte. O DPOR disse também que "os métodos de avaliação médica usados durante uma luta são de responsabilidade exclusiva do médico e presume-se que estejam de acordo com os padrões estabelecidos de atendimento". O Conselho Mundial de Boxe não se pronunciou.

Mas esse é o problema do boxe profissional. O caso internacional de Prichard Colón lançou luz sobre o fato de que o boxe profissional continua sendo o único grande esporte nos EUA que não tem uma associação, liga ou outro órgão regulador forte e centralizado para estabelecer e aplicar regras e práticas uniformes.

Em 1996, o Congresso promulgou a Lei de Segurança do Boxe Profissional ao perceber que os estados individuais não estavam protegendo adequadamente os boxeadores. Quatro anos depois, essa lei foi aumentada pela Lei de Reforma do Boxe Muhammad Ali, e essas duas legislações, juntas, são chamadas de Lei Ali. 

Por mais que tenha surgido como forma de proteger os pugilistas de maneira física e financeira, a Lei Ali sofre de falhas graves, sobretudo no fato de que ninguém se importa em impô-la. Muitas pessoas no boxe simplesmente ignoram as exigências do ato, e praticamente ninguém em posição de autoridade em relação à aplicação da lei está fazendo algo para remediar a situação.

Um esporte que não representa a América

(Fonte: GettyImages/Reprodução)
A falta de regulamentação do boxe nos EUA aumenta as mortes. (Fonte: GettyImages/Reprodução)

Em 2012, o então senador do Arizona, John McCain, do partido Republicano, tentou criar uma Comissão de Boxe dos Estados Unidos para tentar unificar o esporte. “A supervisão ineficaz do boxe profissional continuará a resultar em escândalos, controvérsias, práticas antiéticas, falta de confiança na integridade dos resultados julgados e, os mais trágico de tudo, mortes desnecessárias no esporte”, disse ele em um discurso no Senado ao apresentar sua legislação.

Não é para menos que muitos críticos chamam o boxe dos EUA de uma espécie de Reaganomics do negócio esportivo, em referência à política econômica adotada por Ronald Reagan na década de 1980, visto que as comissões estaduais criam seus próprios órgãos de governo local, supervisionando tudo, desde padrões de segurança até acordos financeiros. Desse modo, é constituído uma verdadeira máfia, exatamente porque os poderosos que se beneficiam do funcionamento do atual sistema deixam a intervenção federal como a única opção – algo que raramente acontece.

Para o notório Gil Clancy, um treinador de boxe e um dos mais notáveis comentaristas do esporte de todos os tempos, os próprios lutadores que reforçam o antissindicalismo por serem os últimos individualistas em um negócio cruel em que só pensam no pagamento no final do dia. É por essa razão que, desde o início do século XXI, o esporte enfrenta um declínio permanente.

Autor de The Meaning of Sports, o professor de relações exteriores da Universidade Johns Hopkins, Michael Mandelbaum salientou que, na primeira era de ouro dos esportes americanos, o boxe prevaleceu ao lado do beisebol e das corridas de cavalos. A modalidade, no entanto, sofreu uma queda devido ao aumento dos esportes coletivos, sendo que muitos se enganam sobre sua popularidade devido à era Ali.

O boxe cresceu entre os imigrantes e afro-americanos. (Fonte: GettyImages/Reprodução)
O boxe cresceu entre os imigrantes e afro-americanos. (Fonte: GettyImages/Reprodução)

Além disso, no último quarto de século, cresceu uma espécie de pudorismo na sociedade americana, que passou a enxergar a ideia de dois homens desferindo socos em rede nacional, um tipo de entretenimento menos respeitável. O boxe nunca esteve no centro da mesa. A origem do esporte está profundamente associada a comunidades de imigrantes e afro-americanos que viram nele um poder de ascensão social e econômica em um sistema opressor que não lhes dava oportunidades.

Crianças e jovens desse mesmo recorte racial e social cresceram à sombra da possibilidade de triunfo no esporte ao ter como inspiração Mike Tyson, Joe Louis e Muhammad Ali. Enquanto enfrentavam as adversidades e eram empurrados para o submundo da sociedade, se aproximando mais do crime, o boxe serviu como uma luz no fim do túnel que precisou ser agarrada com brutalidade e, literalmente, com os próprios punhos.

Com a limpeza visual que os estadunidenses fizeram no que chamavam de entretenimento e associavam a sua imagem, parece ainda menos relevante para o governo se os lutadores estão morrendo ou não por arbitragem e práticas escusas. Afinal, esse não é o esporte da América, apenas um que sempre habitou as regiões mais importantes da corrupção e do crime organizado. Portanto, é quase como essa série de desgraças fossem parte do "ossos do ofício".

No final das contas, o que importa é que a economia manipulada da modalidade continue rodando e beneficiando quem tem poder o suficiente sobre ela. O que vimos do boxe e de sua exaltação foi apenas a fetichização do campeão caído, seja lá em qual âmbito, e da glorificação do papel ilusório da América como a “terra das possibilidades para todos”.

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